quarta-feira, 2 de novembro de 2016

Um Cavalheiro é Simplesmente um Lobo Paciente

          Fui tomado por simbólico, coisa que certamente não sou. Eis que durante um encontro entre amigos, entre um drinque e outro me pediram que esclarecesse um fato referente a uma primorosa dama. Não é correto jogar a lama a honra de uma mulher, mas deixar seus amigos entediados em uma festa também não é fato corriqueiro. Pus-me então a desvelar um detalhado retrato do ocorrido, senão em realidade, pelo menos em minha imaginação já um tanto enevoada pelo avançar da noite, com o sucessivo esvaziar e encher de copos. Bem sabido é - disse eu, com a voz um tanto pastosa - que D. Charlotte, possuidora de ostensivos mamares - tinha de falar na linguagem deles, para impressiona-los de imediato - já não possui a tão estimada capacidade de ruborizar! Poderia ter parado aí, envergonhado de minha atitude pouco cavalheiresca, contudo o vulgar expresso nos olhos do populacho me atrai mais que a bebida amarelenta e gelada, que mais uma vez me foi servida. Com os olhos semicerrados, como se para me lembrar melhor do ocorrido continuei meu relato, apesar de ser o torpor do álcool a me pesar os sobrolhos. Estava eu, um quarto para as nove, postado a frente de um portal, bem conhecido de vocês, quando vi um vulto coberto por uma capa negra de veludo. - tem que se admirar a minha capacidade poética, dando o devido peso ao fato de eu não estar mais me aguentando no meu. - O vulto se movia rápido, com a cabeça encoberta. Mas olhos de águia como sou e bom de formas, logo reconheci o contorno do voluptuoso corpo de Charlotte. - Tenho que confessar que percebi meu exagero nos olhos um tanto duvidosos de meus companheiros. Tomei um pequeno gole e me refiz do golpe de minha vaidade ferida. Como ousavam duvidar de minha palavra? - Como era noite entrada, e não faz meu feitio levantar falsos testemunhos, passei a seguir o objeto de minha dúvida. - Olhei em torno para me certificar de que havia reganho a atenção e carinho de meus camaradas de noites infindas, e então prossegui.

          Ao perceber que alguém se assomava em seu encalço, a impudente dama apressou o passo, e eu o meu. O medo pareceu domina-la, então ela correu, derrubando o capuz que encobria sua identidade. Num movimento surpreendentemente sublime, assomou e desceu-lhe pelas costas seu brilhante e sedoso cacheado louro. - Agora sim! Todos olhavam atentamente, aguardando o momento em que eu a desmascararia, relegando-a a mais subjugada humilhação. Como a humanidade é torpe, pensei, e como sou um perfeito e digníssimo representante dela. Olhei-os do alto, com toda a superioridade presumida de quem sabe mais, respirei fundo e continuei meu relato. - Perturbada pelo ocorrido, ela voltou-se, e mirou em mim seus olhos de fera acuada. Por um instante me perdi na floresta selvagem de seus olhos verde escuros. Me aproximei e ela estacou, com olhos suplicantes. Toquei seu queixo com minha mão enluvada e disse-lhe num sussurro: Não me olhes tolamente doce criança. Bem sabias o que te esperava ao sair a estas horas, com o corpete mal ajambrado. Coloquei o braço em torno de seus ombros e levei para casa meu troféu recém-conquistado. - Olhares de deslumbre me eram dirigidos de todos os lados. Sorri, meu sorriso mais viscoso, terminei minha bebida e deixei o local. Uma saída triunfal, uma bela história e mais uma reputação destruída.




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